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Comentário – STJ anula acórdão que dá interpretação restritiva à dedução de custos da base de cálculo do ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte
01/09/2015

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que manteve autuação fiscal contra empresa que discutia a base de cálculo do ICMS incidente sobre as mercadorias transferidas entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, situados em diferentes Estados da Federação. A empresa em questão é a Kraft Foods, que foi autuada em R$ 19 milhões pelo Estado do Rio de Janeiro, por entender o Fisco Estadual que a base de cálculo utilizada pela empresa se valia de uma interpretação ampliativa da Lei, em uma tentativa de se creditar de custos não abarcados pela definição legal nesta modalidade de operação.

 

Inicialmente, esclareça-se que a hipótese de incidência do ICMS é a ocorrência de operação de circulação de mercadorias, o que envolve a transação do bem pactuada entre duas pessoas ou entes. No caso de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, muito se discute acerca da incidência ou não do imposto, tendo em vista que o fato gerador do tributo é o negócio jurídico capaz de transferir a titularidade da mercadoria, promovido com habitualidade e com finalidade lucrativa, como tipicamente ocorre nas hipóteses de compra e venda mercantil.

 

Sendo assim, a remessa de mercadoria de um estabelecimento para outro, da mesma empresa, é considerada uma simples saída física, mero deslocamento, não se podendo entender que constitua fato gerador do ICMS. 

 

Tal foi o entendimento consolidado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, ao apreciar a questão, em recurso representativo de controvérsia, reconheceu igualmente  a inexistência de fato gerador do ICMS na simples remessa de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, chegando a editar uma Súmula nesse sentido.

 

Contudo, mesmo após pacificada a jurisprudência sobre a matéria, os Fiscos estaduais ainda tiveram há dois anos atrás a iniciativa de questionar o entendimento dos tribunais, sob a alegação de que o posicionamento jurisprudencial não teria considerado os dispositivos da Lei 87/96 sobre a questão, que determinam expressamente a tributação das remessas de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. No entanto, o STJ rechaçou a argumentação do Fisco Estadual, mantendo a posição já consolidada em sua jurisprudência.

 

Foi lançada, no entanto, uma discussão diversa, advinda da praxe comercial de diversas empresas, que optam pela apuração do ICMS nas operações de transferência (para estabelecimentos de um mesmo titular), debitando-o no estabelecimento de origem e apurando o crédito no estabelecimento de destino, de forma a possibilitar a utilização do crédito – o que não ocorreria na hipótese de não incidência do ICMS, visto que só é possível ao adquirente creditar-se do imposto se houver incidência do tributo na operação anterior.

 

Com isso, surgiu um debate paralelo à não incidência do ICMS nessas situações: passou-se a discutir a base de cálculo do tributo para as remessas entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, nos termos da Lei 87/96 e da prática dos Fiscos estaduais.

 

Os contribuintes entendem que deveriam se debitar no estabelecimento de origem e, consequentemente, obter créditos no destino, pelo valor da entrada mais recente da mercadoria, em atendimento ao disposto no art. 13, § 4º, I, da Lei 87/96[1]. As Fazendas Estaduais, por sua vez, entendem que o creditamento deveria se dar com base no inciso II do dispositivo, que prevê ser a base de cálculo o custo de produção da mercadoria. Com isso, pretendiam evitar distorções na arrecadação supostamente praticada por algumas empresas.

 

O STJ foi levado a analisar a questão, não mais sob o enfoque da incidência ou não do imposto, mas de qual base de cálculo deve ser aplicada.

 

Em um dos casos conduzido à apreciação do tribunal, determinada empresa foi autuada pelo Estado do Rio Grande do Sul, por entender o fisco gaúcho que houve apropriação indevida de créditos de ICMS. Essa era a forma de operacionalização: i) o estabelecimento industrial da referida empresa, localizado em São Paulo, Capital, transferia mercadorias para o seu Centro de Distribuição (“CD”) localizado em São Bernardo do Campo/SP, com a apuração e recolhimento do ICMS tendo por base o custo de produção; ii) na remessa do CD para as filiais da empresa em outros Estados, o valor utilizado como base de cálculo do ICMS era valor das entradas mais recentes da mercadoria, superior ao custo de produção, próximo ou mesmo superior ao valor de venda final do produto. Segundo o Fisco, a base de cálculo deveria corresponder ao custo da mercadoria produzida, correspondente  à soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento.

 

De acordo com o Estado do Rio Grande do Sul, entender de forma diversa ocasionaria uma distorção na arrecadação e na utilização de créditos, visto que  a adoção de base de cálculo maior na operação interestadual implica majoração do recolhimento do imposto para o Estado de São Paulo, gerando por sua vez crédito maior na entrada da mercadoria no Rio Grande do Sul. Dessa forma, o Estado de origem (SP) acabaria ficando com praticamente todo o imposto, devendo o Estado de destino (RS) apenas admitir e compensar os créditos do contribuinte, no montante do valor recolhido ao Estado de São Paulo. O entendimento da Sefaz RS foi chancelado pelo TJRS, levando à conclusão de que  o procedimento do contribuinte ocasionava destaque a maior do ICMS e consequente apropriação indevida de créditos perante o RS, diminuindo o saldo de imposto a pagar nas operações posteriores, realizadas pelo estabelecimento situado no Rio Grande do Sul.

 

Seguindo o entendimento do TJRS, o STJ deu ganho de causa ao Estado, sob o fundamento de que o CD é mero prolongamento do parque industrial, devendo a base de cálculo do tributo, na remessa feita pelo CD a filiais em outros Estados, ser o custo da produção, e não o valor da entrada mais recente.

 A decisão do STJ causou grande insegurança nos contribuintes, pois passou a admitir a incidência do ICMS nas transferências interestaduais, apesar de não se verificar a alteração da titularidade do bem. Com isso, seguiu-se um novo paradigma, segundo o qual restaria excepcionada a materialidade do ICMS nas situações em que não há efetivamente operações relativas à circulação de mercadorias, mas a sua transferência interestadual, situação em que a base de cálculo será, na hipótese de produto industrializado, o custo da mercadoria.

 

Em outro leading case sobre a matéria no STJ, da Kraft Foods, apesar de adotar como base de cálculo o custo da produção, a empresa entendeu ser possível inserir na base de cálculo gastos como mão de obra indireta, despesas fixas e gastos gerais de fabricação, por considerar que seja este o custo real de fabricação, não sendo possível, portanto, se dar uma interpretação restritiva à lei que determina incidir o ICMS sobre o custo da mercadoria produzida.

 

O Estado do Rio de Janeiro, contudo, apegou-se à literalidade da redação do art. 13, §4º, II, da lei 87/96, segundo a qual, na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto será “o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento”.  Dessa forma, considerou que houve uma tentativa da empresa de se creditar de custos não contemplados pela definição da lei.

 

O STJ, no entanto, deu razão ao contribuinte quanto à interpretação restritiva realizada pelo TJRJ e anulou a decisão que mantinha a autuação. De acordo com o Ministro Relator, Herman Benjamin, o acórdão não tratou do ponto principal da questão; não julgou o seu mérito, não identificando a natureza restritiva ou não da norma. Limitou-se, portanto, à possibilidade de enquadrar as despesas pretendidas pela empresa na base de cálculo do ICMS. O voto do Relator foi acompanhado pelos demais ministros.



[1] Art. 13. A base de cálculo do imposto é:

§ 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:

I – o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;

 


Quadro-resumo

Incidência do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte

Posicionamento jurisprudencial (STJ)

Ementa

Súmula 166

“Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”

AgRg no AREsp 69931/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 13/02/2012

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. AMEAÇA CONCRETA. CABIMENTO. ICMS. TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIA DE MATRIZ PARA FILIAL DA MESMA EMPRESA. SÚMULA 166/STJ. RECURSO REPETITIVO RESP 1.125.133/SP.                                                                                                                                                                                                    A natureza da operação é a de transferência de produtos entre “estabelecimentos” de mesma propriedade, ou seja, não há circulação de mercadorias, muito menos transferência de titularidade do bem, requisito este necessário à caracterização do imposto, conforme determina a Súmula 166 do STJ. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo regimental improvido”.

REsp 1109298/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2011, DJe 25/05/2011

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ICMS. BASE DE CÁLCULO. ESTABELECIMENTOS. MESMO TITULAR. TRANSFERÊNCIA ENTRE FÁBRICA E CENTRO DE DISTRIBUIÇÃO. ARTIGO 13, § 4º, DA LC 87/96.

1. Discute-se a base de cálculo do ICMS em operações efetuadas pela recorrente entre a Fábrica (SP), o Centro de Distribuição (SP) e a Filial situada no Rio Grande do Sul. Precisamente, a controvérsia refere-se à base de cálculo adotada na saída de produtos do Centro de Distribuição com destino ao Estado gaúcho, o que demanda a interpretação do artigo 13, § 4º, da LC 87/96.

2. Em resumo, a recorrente fabrica mercadorias em São Paulo-SP e as transfere às filiais espalhadas pelo Brasil. Em virtude do grande volume, utiliza, algumas vezes, o Centro de Distribuição localizado em São Bernardo do Campo-SP, antes de proceder à remessa.

3. Constatou o aresto que, na saída das mercadorias do Centro de Distribuição paulista, a recorrente registrava como valor das mercadorias um preço superior ao custo de produção, próximo ou maior do que o valor final do produto (nas alienações ocorridas entre a Filial gaúcha e o comércio varejista ou atacadista daquele Estado).

4. A sociedade empresária recolheu aos cofres paulistas ICMS calculado com base no valor majorado, gerando crédito na entrada dos bens na Filial do RS, onde a alienação das mercadorias a terceiros acarretou débito de ICMS, que acabou compensado com os créditos anteriores pagos ao Estado de São Paulo. Em consequência, concluiu o acórdão recorrido: “… o Estado de origem acaba ficando com todo o imposto, e o Estado de destino apenas com o dever de admitir e compensar os créditos do contribuinte” (fl. 1.172v).

5. A questão jurídica em debate, portanto, refere-se à base de cálculo do ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado do mesmo titular – artigo 13, § 4º, da LC 87/96.

6. Na espécie, por diversas razões a base de cálculo do ICMS deve ser o custo da mercadoria produzida nos termos do artigo 13, § 4º, II, da LC 87/96 (e não a entrada mais recente).

7. Em primeiro, a interpretação da norma deve ser restritiva, pois o citado parágrafo estabelece bases de cálculos específicas. Em segundo, os incisos estão conectados às atividades do sujeito passivo, devendo ser utilizado o inciso II para estabelecimento industrial. Em terceiro, a norma visa evitar o conflito federativo pela arrecadação do tributo, o que impede a interpretação que possibilita o sujeito passivo direcionar o valor do tributo ao Estado que melhor lhe convier.

(…)

16. Recurso especial conhecido em parte e provido também em parte”.

AgRg no Ag 1303176 / GO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2010/0077897-7, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/06/2013, DJe 02/08/2013

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ICMS. DESLOCAMENTO DE MERCADORIA DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO, DO MESMO CONTRIBUINTE. NÃO INCIDÊNCIA. ENTENDIMENTO DO STJ, FIRMADO SOB O REGIME DOS REPETITIVOS (RESP. 1.125.133/SP, REL. MIN. LUIZ FUX, DJE. 10.09.2010). AGRAVO REGIMENTAL DO ESTADO DE GOIÁS DESPROVIDO.
1.   A remoção de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume na hipótese de incidência do
ICMS, porquanto, para a ocorrência do fato imponível pertinente a esse tributo é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria,
ou seja, a transferência de sua propriedade, de um para outro titular. Esse entendimento foi consolidado nesta Corte, em sede de
Recurso Especial repetitivo (REsp. 1.125.133/SP, Rel. Min. LUIZ FUX, DJE 10.09.2010).
2.   A interpretação da lei tributária - e nem mesmo a própria lei tributária - tem a força de transmudar a realidade objetivada nas
relações da vida social, ou seja, embora possam muito, uma e outra, contudo, não podem tudo, pois não podem, por exemplo, erigir em fato
gerador de tributo um evento que, claramente, se exaure em simples alteração do lugar de armazenamento de mercadorias, qual o que
apenas remove, de um para outro estabelecimento do mesmo titular, um determinado estoque de produtos.
3.   Agravo Regimental desprovido.

Dispositvos Legais (LC 87/96)

Previsão

Art. 12

Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:                                                                                                                                               I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular

Art. 13

A base de cálculo do imposto é:                                                                                                                                                                                          § 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:                             I – o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;                                                                                                                                        II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento.